Crónica de Alexandre Honrado
Todo este fogo que arde em nós
Não devíamos esquecer os mortos — e, todavia, o que vai ficando de cada um daqueles que partem é uma mancha que se dilui com o tempo até o lugar que ocupavam em vida não fazer grande sentido.
Esquecer os mortos é esquecermo-nos. É acreditar que somos apenas formatos singulares sem rasto nem raiz nem memórias, quando afinal são esses traços que nos permitem as ousadias plurais: rasto, raiz, memória, lugares de onde partimos para ser o que vamos sendo, até ao fim.
As ruas por onde passamos têm muitos nomes próprios. Desfilamos por artérias (belo nome que parece conter o sangue que nos faz), artérias que evocam os mortos — e mesmo assim não sabemos quem são os nomeados, em largos, becos, ruelas, pracetas, travessas, ruas, avenidas, nem porque os inscrevemos nas moradas para onde já raramente escrevemos cartas ou postais (porque até nesse gesto de comunicar esquecemos os mortos que, de uma ou outra forma, nos deram vida e escrever parece ter-se tornado mais uma preguiça que a inteligência fundamental endossou a uma qualquer artificial).
Se somos quem transportamos como herança, podemos tecer mais fortemente os universos que sinonimizamos. Eu serei eu apenas com o outro. Não é duplicidade, mas afirmação. Não é desdobramento, mas alteridade. Mesmo que os mortos não sejam bons exemplos e as recordações nos levem a desejar um passo adiante, sem ter de repetir os erros antecedentes.
As notícias invadem-nos os sentidos: temos ouvidos e lemos, não podemos ignorar. E chegam-nos carregadas de mortos e de morte, dos cenários de guerra que crescem e que são a todos os títulos injustificáveis, dos incêndios de tantos fogos postos, dos bairros em revolta porque morreu um dos seus (para não esquecer Odair Moniz, hoje exemplo de muitos outros mortos).
Quando vejo o meu país de origem a consumir-se de chamas — o fogo posto pode ser na floresta ou no bairro onde se abate a tiro uma vida, sinto soltar-se em mim a labareda da indignação. A indignação — que mesmo ilegal é quase sempre legítima e quando alastra às ruas é porque já não a podemos conter no nosso espaço de coisas vivas, as que nos fazem pensar, sentir, agir e, sobretudo, nos fazem reagir, sendo todo este fogo que arde em nós.
Alexandre Honrado
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